ÉTICA E POLÍTICA: O SILÊNCIO DE MAQUIAVEL

Por Arrison Berkenbrock

O turbilhão de fatos políticos recentemente ocorridos em Imbituba sugere uma reflexão sobre a relação ética e política. Acusações de ambos os lados, versões antagônicas, atmosfera de animosidade, suspeitas de fraudes e de compra de votos colocam o eleitor em um fogo cruzado, sem saber em quem acreditar. Afinal, quem está falando a verdade? Por que disto tudo? Qual é o lugar da ética na política?

É fato que hoje em dia, as relações entre ética e política tornaram-se intrincadas e conflituosas. Os meios de comunicação não raras vezes denunciam casos de corrupção, aliás, ninguém mais fica estarrecido quando se depara com notícias desse gênero. A corrupção se tornou comum, embora nunca possa ser concebida como normal. Estamos, de fato, vivenciando uma confusão de valores que associa corrupção à inteligência, e não a desvio de caráter.

Apesar de um quadro nada animador, não deixa de ser curioso perceber que nem sempre a questão da ética na política foi tão confusa. Houve um tempo que as pessoas pensavam que a política não só era compatível com a ética, como sua função era justamente a de realizá-la. Nesta compreensão, o governante era o homem bom, que, precisamente pelos princípios que cultivava e decisões que tomava era merecedor de ser revestido do poder. Não que todos ou a grande maioria dos governantes fossem bons, todavia, poucas pessoas hesitariam em afirmar que o melhor governante seria aquele que, em meio aos homens, fosse o mais virtuoso.

E hoje? Já não temos tanta certeza disto. É claro que desejamos bons governantes, mas evidentemente não será a virtude a característica fundamental que os qualificam para exercer o poder. Com efeito, um bom homem pode não ser um bom político e, neste caso, a recíproca também é verdadeira. Por conta desta incongruência, outrora impensável, é que podemos facilmente nos confundir. Ética e política são complementares ou conflitantes? Como entender essa relação, partindo do pressuposto que a política não é imaculada e tampouco é o espaço de concretização dos princípios éticos?

Percebe-se, assim, que o modo de pensar acerca do mundo político tem uma história, ao longo da qual a relação ética e política, antes vista como clara e definida, passa a ser compreendida como um tema de grandes controvérsias. O grande divisor de águas, o grande marco dessa história é o pensador florentino Nicolau Maquiavel (1469-1527). A principal obra de Maquiavel é “O Príncipe”, escrito em 1513, mas publicado somente em 1532. Trata-se de um livro conciso, instigante, provocador, que em poucas páginas conseguiu revolucionar a história do pensamento político e o modo como os homens pensavam a relação ética e política. Não é por acaso que é um clássico. E os clássicos, como afirmam os estudiosos, são sempre atuais. Temos que ler e conhecer, se quisermos entender por que pensamos do modo como pensamos.

Maquiavel é um pensador conhecido, embora pouco compreendido. Quem nunca ouviu falar em Maquiavel? Quem nunca escutou “os fins justificam os meios”, uma variante daquilo que o florentino discorreu no capítulo XVIII d’ O Príncipe? É comum também utilizarmos o termo maquiavélico para nos referirmos às pessoas cujas atitudes não se coadunam com os “bons princípios”. Muito embora, vale ressaltar, Maquiavel não preconizou, como o uso popular do termo maquiavélico entende, uma política sem ética, mas foi o primeiro a analisar a política mediante uma perspectiva realista.

Para entendermos o impacto que o corpo ideário de Maquiavel provocou na história do pensamento político é necessário analisar como a política era tradicionalmente pensada. As principais referências teóricas do século XVI, portanto do início da modernidade, estavam intimamente vinculadas ao pensamento cristão. Tomás de Aquino (1227-1274), doutor da Igreja Católica e um dos principais nomes da filosofia medieval, foi, seguramente, a figura de maior proeminência intelectual desse período, não somente pela variedade de temas que abordou, como também pela proficuidade de seus argumentos e conclusões.

No tocante à esfera política, a principal obra de Tomás de Aquino foi De regno (Do Reino). Nesse tratado, Aquino sustentou que os homens naturalmente tendiam à harmonia e, de igual modo, à vida virtuosa. Por conseguinte, cabe ao governante duas grandes funções, quais sejam: a) preservar o reino para que não seja destruído; b) outrossim,  fazer dos homens que governam pessoas virtuosas. Partindo dessa compreensão, o governante é visto como um bom timoneiro que, além de manter incólume a embarcação em face das intempéries do mar revolto, também é capaz de conduzi-la a um belo porto – o porto da justiça e da virtude.

O pensamento de Maquiavel é diferente! O florentino acreditava, sim, que o governante deve manter a república ou principado preservados, todavia, no que concerne ao segundo propósito postulado (conduzir a virtude) por Aquino, nada diz. É justamente no ponto que acena para a finalidade ética da política que Maquiavel silencia. O silêncio de Maquiavel vai impactar, inovar, incomodar, mas é a partir daí que a política passa a ser pensada como ela é, e não como deve ser.

A grande novidade emergida com o pensamento de Maquiavel consiste em reconhecer que a vida social não tende naturalmente à harmonia, como pensavam os antigos e medievais, mas ao conflito. A vida social é constituída por um conflito fundamental entre os grupos sociais. Todo grupo social tem interesses que, apesar de serem legítimos, por vezes são antitéticos, ou seja, não há como atender um sem suprimir o outro. O conflito não será destrutivo se tiver a capacidade de assumir uma forma institucional, transfigurando-se em leis e ordenações que contemplem a acomodação de suas causas. Embora esta acomodação não seja definitiva, uma vez que o conflito entre os homens não poderá ser eliminado, estas camadas de instituições resultantes permitem a estabilidade dos governos. Com efeito, a base da política é o conflito, e a grandeza de um governante reside justamente na capacidade que ele tem de mediar e articulá-lo, sem com isso inviabilizar a vida social.

A tarefa de mediar conflitos já consome muito tempo do governante, não sendo, portanto, função dele tornar os homens virtuosos. Tomás de Aquino entendia o governante como a encarnação dos princípios éticos. Maquiavel compreendia as qualidades do governante como específicas de sua incumbência – capacidade de mediar os interesses divergentes dos grupos sociais. É como se a política tivesse a sua própria dinâmica que, evidentemente, não se identifica com a ética. Conforme Chauí, “a finalidade da política não é, como diziam os pensadores gregos, romanos e cristãos, a justiça e o bem comum, mas, como sempre souberam os políticos, a tomada e manutenção do poder”.

Em Maquiavel a política não é a lógica racional da justiça, da virtude e da ética, mas a lógica da força transformada em lógica do poder e da lei.  O príncipe precisa ter virtù, encarada em termos estritamente políticos, que consiste em criar mecanismos que possam lhe assegurar o poder, mesmo que tais meios não sejam condizentes com a moral cristã. Maquiavel não renega a moral cristã, apenas admite que, em certas circunstâncias, ela não é um método eficiente para promover o equilíbrio entre as forças sociais e, por consequência, manter-se no poder.

Assim como Maquiavel, muitas pessoas silenciam diante dos fatos políticos. Silenciar ante a ausência da ética nos comportamentos de certas personalidades políticas não é necessariamente defender uma política divorciada da ética. Nem Maquiavel postulou isto, embora muitas vezes assim foi interpretado (erroneamente). Calar-se diante da corrupção é um grave sintoma do fenecimento das utopias. Não podemos acreditar que não pode ser diferente. Precisamos alimentar os sonhos, renovar a esperança. Para que serve a utopia? "A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar". (Galeano). 

Acredite! Uma flor nasceu na estrada!

Um comentário:

  1. Gostei. Blog interessante e de fato nos leva a reflexões. Apos a leitura conclui que Ética e Política são complementares e, por via de conseqüência serei obrigado a escolher candidatos que sejam qualificados para exercer o poder e possuam as virtudes que os possam qualificar com a ética necessária para exercê-la procurando tornar nossa política o mais imaculada possível.
    Se as relações entre ética e política tornaram-se intrincadas e conflituosas e a corrupção se tornou comum os culpados não são os políticos e sim os eleitores que votam em candidatos desonestos em eleições após este candidato ter sido desonesto. Vendem seu voto ou trocam por favores que seriam obrigação do eleito fazer. Como foi bem dito no blog: “Estamos vivenciando uma confusão de valores que associa a corrupção à inteligência, e não a desvio de caráter. A corrupção se tornou comum, embora não possa ser concebida como normal”.
    Quando Maquiavel pronunciou: “Os fins justificam os meios” com certeza não estava liberando o uso de atitudes imorais para atingir um objetivo e embora tenha sido um escritor de renome, estava se referindo a política da época e seus pensamentos foram pouco compreendidos.
    Por outro lado, se a vida social não tende naturalmente à harmonia e sim ao conflito, não valida lutar por seus direitos sem ética.
    Discordo que o governante não tenha que tornar homens virtuosos, é um princípio da educação.
    Os tempos são outros, mas a ética não mudou nada, ou se tem ética ou se é um safado.

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