Magistrado Fernando Speck concede entrevista sobre a Lei Maria da Penha - parte I


No final de setembro de 2013 mantive contato com o Juiz de Direito Fernando Speck de Souza e solicitei uma entrevista sobre o tema Lei Maria da Penha. Pedido feito e aceito, a entrevista iniciou-se naquele mês, por email, e foi realizada de acordo com o tempo disponível do entrevistado e deste blogueiro.

O magistrado é imbitubense e ingressou na magistratura catarinense há 10 anos. Atualmente, atua na 2ª Vara Cível da Comarca de Joinville-SC.

Vamos à entrevista, que será dividida em duas partes.

Pena Digital - A Lei Maria da Penha foi criada com o objetivo de prevenir e proteger as mulheres diante de seus agressores. Uma resposta do Estado visando à diminuição da violência doméstica. No último dia 7 de agosto essa lei completou sete anos. Já são 900 mil processos judiciais no âmbito dessa lei. Mais de 300 mil medidas protetivas. Na sua opinião, quais os principais pontos positivos e negativos desta lei?

Juiz Fernando - A Lei Maria da Penha trouxe muitas inovações positivas. Destacarei as duas melhores, na minha opinião. A primeira foi o estabelecimento de medidas protetivas de urgência. Estas importam em uma resposta rápida e efetiva no sentido de se afastar o homem agressor (marido, companheiro, filho, pai, irmão etc.) do seio familiar, evitando que a mulher fique à mercê de novas agressões que, em muitos casos, levam à sua morte. Outro fator positivo foi o afastamento da incidência da Lei 9.099/95, que trata dos juizados especiais, nos crimes de violência doméstica. Com isso, o criminoso fica impedido de firmar uma transação penal, por exemplo. Ou seja, ainda que o crime de ameaça, por prever pena baixa, seja de menor potencial ofensivo, quando praticado contra a mulher, no âmbito familiar, deixa de sê-lo.

Quanto aos pontos negativos, penso que o primeiro reside no fato de a Lei Maria da Penha não prever crimes. Ficamos restritos aos tipos do Código Penal, cujas penas, para os crimes mais corriqueiros, são baixas. Nesse caso, ainda que a persecução penal seja mais rigorosa e efetiva, o tempo de duração da pena será o mesmo, salvo no caso da lesão corporal leve, que antes mesmo da Lei Maria da Penha (em 2004), recebeu uma qualificadora quando praticada no lar. Mas, ainda assim, a pena é baixa. Outro ponto negativo é a redação da lei. Com o devido respeito, entendo que o texto legal apresenta equívocos. Exemplo disso é o art. 17, que prevê “pena de cesta básica”. Atribuo esta falta de técnica ao fato de a Lei Maria da Penha ser fruto de uma condenação sofrida pelo Brasil por negligência e omissão no trato com a violência contra mulheres. A OEA “recomendou” a edição da lei. Ou seja, não foi um processo tão natural assim; ela foi imposta, apesar de reconhecer que houve um movimento muito intenso de vários grupos em prol da sua promulgação.

Pena Digital - No artigo primeiro da lei, consta que "Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal". No parágrafo referido consta que "O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações." E o artigo 5º da Lei Magna diz que "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza".

Qual o seu entendimento sobre a utilização dessa lei em favor dos homens que sofrem violência doméstica, muitas vezes sendo a mulher a agressora?

Juiz Fernando - Esta é outra crítica que muitos fazem à Lei Maria da Penha. Ela só é aplicável às mulheres, o que, em uma primeira leitura, poderia fazer-nos crer seja ela inconstitucional. Ora, homens e mulheres são iguais perante a lei, não são? De todo modo, o plenário do STF, que é o guardião da Constituição, já assentou que a Lei Maria da Penha é constitucional. Essa conclusão decorre do princípio da isonomia, segundo o qual devemos tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais. Realmente, concordo que haja uma lei que privilegie o gênero feminino. Em que pese existam exceções, as mulheres são, sim, mais frágeis do que os homens, ao menos fisicamente. Elas precisam, portanto, de uma lei específica para protegê-las, assim como existe o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Estatuto do Idoso, que também protegem pessoas que detêm uma condição especial.

Quanto à aplicação da Lei Maria da Penha em favor de homens vítimas de violência doméstica, sou totalmente contra. Já ouvi alguns defenderem que seria possível fazer uma interpretação conforme a Constituição a fim de estender os efeitos da Lei n. 11.340/06 às pessoas do gênero masculino. Ocorre que é regra básica de Direito Penal a impossibilidade de se utilizar a analogia para prejudicar o réu. E a aplicação da Lei Maria da Penha em favor de homens seria analogia pura em prejuízo de uma ou outra mulher agressora.

Pena Digital - A Lei Maria da Penha poderia ser utilizada em defesa de travestis, transgêneros e transexuais?

Juiz Fernando - A pergunta é excelente. Tema para uma monografia. Mas em razão do espaço, tentarei ser o mais objetivo possível. Sabemos que o Direito Penal se pauta no princípio da legalidade. É com base nele que não se admite a analogia para prejudicar o réu. É por isso que sou contrário à aplicação da Lei Maria da Penha em favor dos homens. A lei foi criada para proteger mulheres. Sei que o profissional do Direito deve pensar: não basta ser mero aplicador de leis. Mas, em Direito Penal, devemos, antes de mais nada, ter em mente que há muitos princípios em favor dos réus, justo para evitar arbitrariedades. Enquanto não forem criadas leis para proteger o grupo GLBT, temos que trabalhar com as leis existentes. Travestis são homens. Logo, não há como se admitir a aplicação da Lei Maria da Penha em favor deles. O mesmo se aplica ao transgênero, que cito como exemplo as drag queens (vivem como homens durante o dia e mulheres à noite, em razão da profissão). Quanto aos transexuais, a situação muda um pouco. Tratarei a questão de forma jurídica, já que o tema é a aplicação de uma Lei. Digo isso porque questões jurídicas e biológicas nem sempre coincidem. Exemplo disso é a adoção: filhos adotados e filhos biológicos felizmente são tratados de forma idêntica. No tocante à Lei Maria da Penha, ela é aplicada para proteger mulheres. Nessa direção, entendo que se o transexual obtém, judicialmente, o direito de mudar de nome e de gênero (do masculino para o feminino), ele passa a ser mulher do ponto de vista jurídico. Ainda que não possua útero e outros órgãos tipicamente femininos, ele passa a ser juridicamente uma mulher. E, como mulher, deve ser protegida pela Lei Maria da Penha.

Pena Digital - Eu costumo dizer que o Estado, quando não consegue resolver um problema social, por falta de investimentos ou competência, cria leis penais e direciona a questão para a polícia. E aí temos um Estado penal máximo e um Estado social mínimo. Pelo que se vê na prática, a maioria dos casos de Maria da Penha que chegam às delegacias e ao Judiciário envolvem famílias desestruturadas socialmente, de baixa renda e com pouca escolaridade. Geralmente, o que se observa é que as vítimas e agressores necessitam mais de atendimento social (psicólogos, psiquiatras, atendimento médico, internações para tratamento de dependência química e alcoolismo) que policial. Ou seja, a Lei Maria da Penha é ineficiente, porque não resolve o problema principal, e criminaliza apenas uma parcela da população desassistida pelo Estado. Concorda com esse ponto de vista ou a lei poderá mesmo minimizar esse problema familiar?

Juiz Fernando - Concordo em parte. Não nego que o Estado, em inúmeros casos, cria mecanismos para tentar compensar a sua ineficiência. Exemplo disso são as ações afirmativas; em várias cidades o ensino público é ruim. Mas, ao invés de melhorá-lo, o Estado instituiu cotas nas universidades públicas para pessoas de baixa renda. Com as leis penais, a meu ver, é quase assim. A Lei Maria da Penha, não nego, só existe porque inúmeras famílias são desestruturadas. Falta, sim, atenção das autoridades e dos programas sociais no amparo e atendimento destas famílias. Os programas são bons, mas não atendem toda a população necessitada. Todavia, não podemos esquecer que medidas urgentes precisam ser tomadas. Aguardar a estruturação destas famílias levaria tempo demais. Leis penais sempre precisarão existir, sobretudo porque não só pessoas pobres cometem crimes; muitas pessoas que receberam todo o amparo da família e da sociedade também infringem as leis. Não fosse assim, viveríamos no mundo ideal. Penso de forma mista. A Lei deve existir para estancar o problema emergencial. Até acredito que em alguns casos ela minimize determinados problemas familiares. Mas o atendimento social através de uma equipe multidisciplinar é imprescindível, sem prejuízo da atuação policial.

Pena Digital - O que se observa nas ações penais em crimes vinculados à lei em discussão é que grande parte das vítimas (ainda não encontrei estatísticas) arrepende-se da comunicação dos fatos à polícia, e até mesmo na esfera judicial renuncia ao direito de representar criminalmente em face do autor. Entretanto, o STJ decidiu que tais ações devem tramitar independentemente da representação, ou seja, ignora-se a vontade da vítima. Ocorre que, muitas vezes, a ação está tramitando e o casal reconciliou e está residindo sob o mesmo teto. Não estaria o Estado causando um problema social, em vez de propiciar a reconciliação e a manutenção do núcleo familiar?

Juiz Fernando - Sim, estaria. Ocorre que tais questões possuem inúmeras variantes. Há mulheres que desistem porque se reconciliaram. Há mulheres que desistem porque o marido foi preso e deixou de colocar comida na mesa (no ano de 2006, quando a Lei Maria da Penha entrou em vigor, uma senhora muito humilde foi até o fórum onde eu trabalhava pedir a soltura do marido em razão disso). Há mulheres que desistem por pressão da família ou porque por medo de sofrerem um mal maior ao fim do processo. E nesse último caso, penso que o melhor é que a mulher realmente não possa desistir da representação. Enfim, infelizmente, a lei não consegue abarcar todas as situações. Em que pese a Lei Maria da Penha possua sete anos, a impossibilidade de renúncia quando há lesão corporal foi pacificada recentemente.

Com o tempo, todos saberão que, havendo representação, não há como desistir. Foi assim com a lei que proíbe o cigarro em lugares fechados. Antigamente, era comum que as pessoas fumassem. Hoje, mesmo quando não há placas, as pessoas vão para a rua fumar, salvo algumas exceções; sempre há exceções. Com base nisso, penso que a sociedade se adequará a esta situação, de modo que as mulheres, com o tempo, deixem de usar a Lei Maria da Penha apenas para “assustar” os maridos. Não é essa a função da Polícia e do Poder Judiciário. Elas saberão que não poderão desistir e somente procurarão as autoridades quando for necessário. Até lá, situações peculiares como a narrada na pergunta sempre ocorrerão. Mas é o preço que se paga até que situações jurídicas novas estejam consolidadas.

Leia a segunda parte desta entrevista.

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