Vamos à segunda parte da entrevista com o Juiz Fernando Speck.
Pena Digital - Eu tenho mais um questionamento sobre a despicienda representação, mesmo nos casos de lesão corporal leve e a previsão legal do
art. 16. Mirabete, Prado e Porto, por exemplo, alinham-se no mesmo sentido da necessidade de representação nesses casos.
Em 2010, escrevi
artigo no qual questionei a exigibilidade de representação nos casos de estupro e a não exigência nos casos de violência doméstica (lesões corporais), que para mim seria contrassenso.
Não seria melhor para a mulher e para a família, para a paz social e conciliação o direito à representação nos casos de lesões corporais leves, tendo como medida policial o afastamento do autor do convívio familiar e não a prisão, e a denúncia após a ratificação da representação?
Aliás, o próprio STJ, no
HC 113608 MG, decidiu pela imprescindibilidade da representação nas lesões simples.
Juiz Fernando - Li teu artigo; aliás, muito bem escrito. Teus fundamentos são relevantíssimos e muito substanciosos. De fato, muitas vezes o prosseguimento de um processo criminal quando a família já está se reconciliando é mais uma violência, desta vez contra todos os integrantes do núcleo familiar. Mas creio que a exigência ou não da representação tem como fundamento a própria lei e dela não há como fugir. Como destaquei anteriormente, o Direito Penal se funda no princípio da legalidade. E em tema de representação, esta só é exigível quando a lei a prevê. A regra, portanto, é a de que os crimes são apurados mediante ação penal pública incondicionada. A exceção é a representação ou a queixa e, por isso, tal exigência deve ser expressa. Exemplo disso é o crime de ameaça, em que o parágrafo único do art. 147 do Código Penal exige a representação como condição de procedibilidade da ação penal. A Lei Maria da Penha não prevê tipos penais, como ressaltei anteriormente. Desse modo, são aplicados aqueles previstos no Código Penal ou em leis esparsas.
Quanto à lesão corporal, a situação é diferente, a meu ver. Neste crime, a representação passou a ser exigida a partir do ano de 1995, quando foi editada a Lei n. 9.099/95, que trata dos Juizados Especiais. Foi o seu art. 88 que passou a prever a figura da representação nas lesões corporais leves (art. 129, caput, do Código Penal) e nas culposas (art. 129, § 6º, do Código Penal). Em 2004 foi inserida a lesão corporal doméstica no Código Penal (art. 129, § 9º), cujo tipo penal foi modificado pela Lei Maria da Penha, em 2006. Apesar de o delito estar previsto no mesmo art. 129, o § 9º diz respeito a um tipo penal diverso dos antes mencionados (lesão leve e lesão culposa). Logo, quando o mencionado art. 88 foi criado, quis o legislador atingir tão-somente as figuras do art. 129, caput e § 6º, do Código Penal, não as formas qualificadas (dentre as quais se enquadra o § 9º), sobretudo porque isso seria futurologia. E o art. 88 da Lei n. 9.099/95 restringe sua aplicação às “lesões corporais leves e lesões culposas”. Desse modo, entendo que este dispositivo não atinge o art. 129, § 9º, do Código Penal. Não bastasse, ainda que assim não fosse, não se poderia aplicar o art. 88 da Lei n. 9.099/95 às lesões domésticas por expressa vedação legal: art. 41 da Lei Maria da Penha proíbe a aplicação da Lei dos Juizados Especiais aos delitos praticados sob violência doméstica. Logo, ainda que os arts. 12, inc. I, e 16 da Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha) prevejam a figura da representação, creio que esta diz respeito aos demais crimes que admitem expressamente a representação, como é o caso da ameaça. E não é este o caso da lesão corporal doméstica prevista no art. 129, § 9º, do Código Penal. Quisesse o legislador que o art. 88 da Lei n. 9.099/95 atingisse as lesões corporais previstas no art. 129, § 9º, da Lei n. 9.099/95, teria alterado a redação daquele, para incluir, expressamente, a expressão “violência doméstica”.
Outro argumento digno de nota se funda na hermenêutica jurídica. Ora, deve o profissional do Direito valer-se, dentre vários métodos interpretativos, da mens legis (alguns entendem que este método é ultrapassado, não nego). Com efeito, o Projeto de Lei n. 4.559/2004 (que deu origem à Lei Maria da Penha), originariamente previa a hipótese de representação para o crime de lesão corporal. Posteriormente, o legislador suprimiu a possibilidade de representação nos casos de violência doméstica. Assim, aplicando-se a hermenêutica ao presente caso, é evidente que a supressão efetivada indica que a lesão corporal prevista no art. 129, § 9º, do Código Penal se processa mediante ação penal pública incondicionada, com a devida vênia dos entendimentos em sentido contrário, que são inúmeros.
Enfim, por esses motivos é que, a meu ver, a representação é desnecessária na lesão corporal doméstica. Sei que muitos discordarão da minha visão. Mas prefiro viver num Estado em que a lei continue sendo a principal fonte do Direito. Isso me permite conhecer as regras do jogo antes do jogo; regras essas que são iguais para todos e evitam o tratamento desigual. A igualdade também é direito fundamental. É claro que o julgador pode e deve interpretar a lei de uma ou de outra forma, sobretudo para amoldá-la à Constituição e às garantias fundamentais, dentre as quais a dignidade da pessoa humana ocupa lugar de destaque. Mas não podemos esquecer da segurança jurídica. Concordo contigo quando dizes que a conciliação e a manutenção da família é o melhor caminho. Mas isso tem que partir do Poder Legislativo. É este que detém legitimidade política para definir esta situação, fazendo-o por meio de leis. Seus membros são escolhidos pelo povo para desempenhar tal papel, o que não é o caso do Poder Judiciário, que não possui a função de legislar e nem é eleito, não possuindo legitimidade política. Ignorar o que diz a lei em razão de alguma teoria é muito louvável em alguns casos, mas gera uma instabilidade tremenda e, pior, faz com que as pessoas sejam tratadas de forma diversa, o que é tão grave quanto contribuir para a dissolução de uma família. Já é tempo de o Poder Legislativo definir essa questão e colocar uma pá de cal em cima de toda a controvérsia. Já é hora de o Poder Legislativo criar mecanismos mais eficazes para o atendimento de famílias onde ocorre a violência doméstica. Mas, enquanto isso não ocorre, penso que não se pode ignorar o que dispõe a lei. Se a lei não prevê representação para a lesão corporal doméstica, segundo o entendimento que acabo de expor, não pode, a meu ver, o Poder Judiciário interpretar que a representação é possível.
Quanto ao estupro, não nego que, em comparação com a lesão corporal, existe uma desproporcionalidade. A violência sexual é, em tese e na esmagadora maioria dos casos, muito mais grave, inclusive porque também engloba a lesão corporal. De fato, soa no mínimo esquisito que um crime mais grave exija queixa ou representação (dependendo do caso) e outro, menos grave, não. Mas existem razões para isso e estas se fundam, sobretudo, na preservação da intimidade da vítima, que é direito fundamental (art. 5º, inc. X, da Constituição). Por mais que seja difícil imaginar um estuprador solto, é direito da vítima (previsto na Constituição) não se expor para preservar a sua intimidade e isso deve ser respeitado. Quanto à lesão corporal, acredito que em muitos casos a possibilidade de desistência da representação poderia ser mais benéfica para a família, sobretudo para aquelas em que o agressor tem condições de se ressocializar. E a preservação da sociedade conjugal é um fator importante para justificar que a vítima renuncie a representação. Mas, em tal caso, ainda penso que é a lei que deve autorizar, não o Poder Judiciário.
Pena Digital - Sabendo-se que muitas mulheres, de forma criminosa, têm se valido dessa lei para retirar o marido/companheiro da residência, pois provocam uma situação para chamar a polícia, qual deveria ser o tratamento jurídico/penal nesses casos, quando comprovada a artimanha da suposta vítima ou a legítima defesa por parte do suposto autor?
Juiz Fernando - Nesses casos, penso que a mulher deve responder por denunciação caluniosa, crime previsto no art. 339 do Código Penal e que prevê pena de reclusão de dois a oito anos, além de multa. E em sendo este crime processado por ação pública incondicionada, entendo que o próprio delegado, detectando esta hipótese, pode (e deve), por portaria, instaurar de ofício o inquérito para apurar tal crime. O prejuízo para a mulher em tal caso é gravíssimo, justamente porque a pena é bem mais alta do que aquela cominada para a lesão corporal ou ameaça que ela falsamente atribuiu ao parceiro, por exemplo.
Pena Digital - O Estado se vê de mãos atadas quando a vítima registra reiterados boletins de ocorrência e sempre volta a conviver com o marido/companheiro. Haveria algo que o Estado poderia fazer nesses casos, para evitar a movimentação da máquina pública sem qualquer interesse real da vítima?
Juiz Fernando - Essa questão é das mais difíceis e delicadas. Há casos em que, apesar de os maridos praticarem agressões reiteradas, as esposas sempre aceitam reconciliar. Em tais situações, geralmente, a vítima já é conhecida da polícia em razão dos inúmeros registros de ocorrência que já fez. Nessas circunstâncias, é bem possível que ela passe a não ser mais levada a sério pelas autoridades e servidores da Polícia e do Poder Judiciário. Mas há o risco de, justamente neste dia, ocorrer algo mais grave. E é em razão deste receio que a Polícia sempre acaba registrando a ocorrência, o que está correto. Há alguns casos na história forense em que o marido, após inúmeras agressões, acabou matando a mulher. Por isso é que vislumbro vantagens no fato de a lesão corporal praticada no âmbito da violência doméstica ser processada com ação penal pública incondicionada (independentemente de representação). Espera-se, ao menos, que o marido pense duas vezes antes de agredir novamente a mulher, pois ela não poderá desistir da notícia-crime. Mais do que isso, em não havendo a possibilidade de renúncia, o agressor poderá se tornar reincidente (já que o processo irá até o final), o que tornará a sua situação processual mais difícil. Afora toda esta questão jurídica, a solução é o encaminhamento da família para um acompanhamento psicológico. Não nego que o Estado não está tão estruturado para prestar esse atendimento quanto deveria, conforme já conversamos. Mas o problema é mais social do que jurídico.
Pena Digital - Justiça que tarda não é justiça. É o que penso. E essa lentidão pode causar gravíssimos problemas aos litigantes. Embora o Judiciário priorize as ações penais no âmbito da Maria da Penha, o mesmo não acontece com a dissolução da sociedade/divórcio decorrente do registro policial/medida protetiva. Isso pode levar o indigitado autor à privação de parte de seu patrimônio, dificultando sua vida e levando-o a ações agressivas contra sua ex-esposa/companheira. Não deveria os desdobramentos no cível receberem a mesma celeridade, de forma a proteger ainda mais a vítima?
Juiz Fernando - Deveria sim. Concordo plenamente. Aliás, já dizia Rui Barbosa que “justiça tardia nada mais é do que injustiça institucionalizada”. De fato, a efetivação das medidas protetivas de urgência ocorre muito rapidamente. E, em alguns casos, as mulheres se aproveitam delas para tirar os companheiros de casa, que ficarão fora até o término do processo de dissolução da união. Já vi casos em que a mulher retirou o marido de casa e antes do término do processo de dissolução do casamento, já havia estabelecido coabitação com outro homem. O que eu faço em tais casos (não atuo mais na área, salvo nos plantões judiciários) é fixar um prazo de 30 dias de eficácia da medida protetiva. Não proposta a ação de divórcio ou de dissolução de união estável nesse período, a medida perde a eficácia. Todavia, uma vez proposta a ação de dissolução, o ideal é que esta tramite o mais rápido possível, atentando-se sempre para o fato de o companheiro estar fora de casa. Há entendimentos no sentido de se arbitrar aluguel a ser pago pela mulher em razão da ocupação da parte da casa que pertence ao marido ou companheiro afastado, em caso de procrastinação processual. Isso evita que a mulher mal intencionada (o que não é a regra) utilize meios para retardar o andamento do processo. Particularmente, entendo que esta questão é delicadíssima e somente pode ser admitida quando o casal não tem filhos (quando os tem, penso ser mais difícil, pois é obrigação do pai dar um lar aos menores, que, em tais casos, geralmente ficam com a mãe). Não se nega a gravidade de uma agressão contra a mulher; mas a questão que envolve a partilha de bens é totalmente dissociada do motivo da separação, pois unicamente financeira. De resto, não acredito que as ações de dissolução de casamento ou de união estável sejam tão lentas assim. As medidas protetivas é que têm uma dinâmica muito rápida, o que, de regra, é ótimo.
Leia a
primeira parte desta entrevista.
Parabens!! Excelente matéria!
ResponderExcluirObrigado! Méritos ao Dr. Fernando!
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