Desabafo de uma policial civil catarinense

Hoje é Dia de Tiradentes, mas também nesta data comemora-se o Dia do Policial Civil. Contudo, num estado como Santa Catarina, onde o efetivo é menor que em 1984, onde a data-base de reajustes não é cumprida há dois anos, onde o número de pedidos de exonerações é alto, em razão dos baixos salários e escalas de serviço desumanas, não há quase nada para comemorar.
Em fevereiro, uma policial civil catarinense pediu exoneração. Saiu da polícia para trabalhar no teatro. E em sua saída, desabafou na rede social:

"Caros colegas,

Venho por meio deste email me despedir da Polícia Civil, pois na data de ontem entreguei meu pedido de exoneração.

Durante dez anos estive nesta instituição, com dedicação exclusiva e fazendo meu melhor. Quem me conhece pessoalmente sabe que sempre tive grandes diferenças ideológicas com os rumos que a instituição como um todo segue e vem seguindo, e por conta disto já me envolvi em grandes debates pessoalmente e via rede interna (intranet da Polícia Civil).

Tratar os servidores como escravos, oferecendo as piores condições de trabalho possíveis, propagar que os mesmos são heróis, e dizer que se está fazendo segurança pública seria cômico, se não fosse trágico. Seria surreal se não fosse a realidade presente dia a dia.

Durante nove, dos dez anos em que estive na Polícia Civil, acreditei que seria possível mudar a realidade presente de dentro para fora, acreditei na mudança de paradigmas de uma Polícia Civil cumpridora da Constituição Federal de 1988, de uma Polícia Civil pautada pela democracia, acreditei na possibilidade da mudança.
Durante todo este tempo tive muitas angústias, pois me vi muitas vezes em situações as quais iam de encontro a meus princípios, mas que acreditava serem passageiras e necessárias para uma mudança maior.

O último ano foi de grande dificuldade, pois acabei adoecendo seriamente, contudo o afastamento médico para tratamento me deu novos ares e o entendimento de que minha caminhada dentro da Polícia Civil havia chegado ao fim. Desta forma, respeitando meus princípios, decidi não permanecer mais afastada para tratamento de saúde, uma vez que o afastamento destas condições sub-humanas de trabalho me trouxeram de volta a vontade de viver e, portanto, a necessidade de ficar longe e buscar outro caminho se fazia necessário.

Nunca permaneceria em um trabalho somente pelo salário ou estabilidade que ele pudesse me garantir. Assim, compreendi que estava me desrespeitando e colocando em xeque o que para mim é o mais sagrado, o respeito a qualquer ser humano, permanecendo ligada a um trabalho que trata a condição humana sem nenhuma importância, uma vez que submete seus servidores a condições que todos sabemos. Uma instituição policial que não tem respeito às leis trabalhistas, que não oferece o mínimo suporte real para que seus Agentes mantenham a saúde mental em dia e consequentemente exerçam suas funções, tão estressantes, com o mínimo suporte emocional. Decidi que era chegada a hora de me respeitar, que era hora de sair.

Escalas absurdas, com policiais sozinhos em delegacias fantasmas, que muito pouco fazem além de enlouquecer o ser humano que habita prioritariamente em cada Agente de Polícia. Esta, infelizmente, é a realidade da grande maioria das Delegacias. Sem contar os salários totalmente defasados, que não garante o mínimo para uma sobrevivência digna e todas as outras mazelas que conhecemos tão bem.

Caros colegas, hoje me despeço com uma sensação de alívio, pois não podia mais suportar a penhora de minha dignidade. Muito aprendi nestes dez anos de Polícia Civil, uma das grandes lições é de que violência não se combate com mais violência.

Caros colegas, nesta instituição encontrei pessoas com tanta vontade de fazer o bem que acabam sendo usados como bodes expiatórios, verdadeiros idiotas úteis do estado. Aprendi que todos que são subjugados acabam subjugando.

Seria impossível listar aqui tudo o que aprendi, coisas muito boas e coisas muito ruins, também. Contudo, agradeço de coração a cada um que esteve presente em minha caminhada nesta instituição, durante os últimos dez anos.

Desejo aos que ficam que a humanidade esteja acima da instituição, sempre, para que possamos ser uma família humana que se respeita e que faz uma mudança real na sociedade.

A Policia Civil pode ser um divisor de águas dentro da sociedade que tanto buscamos, que se façam valer as leis, os direitos e garantias fundamentais, para todos, sem restrição. Que os colegas façam valer seus direitos e não aceitem a pecha de heróis que em nada ajuda, somente mascara sua condição de humanos explorados por um sistema doente.

Não fiz outro concurso público, nem pretendo fazê-lo. Minha caminhada de agora em diante é dentro das artes, mas precisamente do teatro, o qual me acompanhou por todos estes anos como um aprendizado à parte, como um refrescar em meio à tanta dificuldade e que agora passa a ser meu trabalho.

Gratidão infinita a todos e todas. Meus pedidos de desculpas sinceras, caso tenha magoado alguém com algum posicionamento mais contundente.

Tudo de bom, sempre!

Beatriz Costa Alvarez (ex-policial civil/fev-2014)"

Leitor, nos últimos sete anos, o aumento do efetivo foi de apenas 309 policiais. Foram contratados 1.392, enquanto 1.013 foram desligados da instituição (veja quadro).
Se o efetivo policial já é baixíssimo frente à demanda, existe a possibilidade de mil policiais pedirem aposentadoria a partir de agosto, o que inviabilizaria por certo a Polícia Civil catarinense. O governo não acredita nesta possibilidade de evasão e parece que está pagando pra ver. Quem não está vendo nada mesmo é a população, que desconhece ou ignora o problema. O resultado, porém, será visto por todos, em breve.

Um dos motivos principais dos pedidos de exonerações é o baixo salário. Em 04/11/13, a Confederação Brasileira de Trabalhadores Policiais Civis divulgou tabela com piso salarial desses policiais em todo o Brasil, na qual apresenta Santa Catarina com o pior salário do país (veja tabela), mas o governo divulga outros dados que não representam a verdade.

O governo prometeu salário inicial bruto no valor aproximado de R$ 4.700,00, a partir de dezembro de 2015! Enquanto para os delegados de polícia o valor inicial prometido é de quase R$ 19.000,00, valor este que nenhum policial de base atingirá, mesmo se, por milagre, conseguir chegar ao último nível da carreira (raramente um policial de base consegue chegar ao último nível da carreira). É um fosso enorme que separa delegados do RESTO da Polícia Civil. Por que tamanha diferença? Isso diminui a importância do policial da base dentro da instituição.

Em SC, em 2003, no primeiro mandato de Luiz Henrique da Silveira (PMDB), aprovou-se a Lei nº 254, que nunca foi cumprida. E há de se frisar que a lei foi proposta por ele mesmo, a qual previa que o maior salário dentro da Polícia Civil não poderia ser mais que quatro vezes o menor salário. Foi uma lei eleitoreira, para enganar os policiais. O que se vê é essa aberração atual, onde um recém ingresso na instituição inicia com mais de R$ 18 mil! Diante desse valor, e de acordo com a Lei 254, o salário inicial de um agente de polícia deveria ser de R$ 6 mil.

"a lei poderá estabelecer relação entre a maior e a menor remuneração dos servidores públicos (...)" (art. 23, IV, da Constituição Estadual de Santa Catarina)

"Com base no disposto no art.23, incisos II e III da Constituição do Estado, fica estabelecido que, excluídas as vantagens pessoais, a relação de valores entre a maior e a menor remuneração do Sistema de Segurança Pública será de quatro vezes." (art. 27 da lei nº 254/2003)*

Mas será que o governo cumprirá com o prometido reajuste a partir de agosto? Cumprirá os valores estabelecidos a serem pagos até dezembro de 2015? É possível acreditar nisso? Os questionamentos não são em vão, tendo em vista que por dois anos consecutivos o governo deixou de reajustar os salários na data base estipulada por ele. E quando da instituição da data base única para todos os servidores estaduais, o governo fez divulgar seu "grande feito" nos meios de comunicação, massivamente, "Por Toda Santa Catarina"!
Também não cumpriu as decisões judiciais que o obrigava a pagar todas as horas extras realizadas pelos policiais civis.

"A remuneração e o subsídio dos servidores da administração pública de qualquer dos Poderes, atenderão ao seguinte:
I-a revisão geral anual sempre na mesma data e sem distinção de índices" (art. 23 da Constituição Estadual de Santa Catarina)

O que temos hoje no estado, fruto de uma política de décadas que não deu a importância devida ao futuro da Polícia Civil, é um efetivo envelhecido, não valorizado, desmotivado e doente diante do resumido número de policiais e da imensa carga de trabalho que enfrentam.
Este é o "pacto pela segurança"! Mas quem paga o pato é a população!

*Observação: a Lei nº 254/2003 estabelecia valores salariais iguais entre a Polícia Civil e a Polícia Militar, vinculando-se ao vencimento do cargo de delegado de polícia, mas o Supremo Tribunal Federal decidiu que é inconstitucional a equiparação salarial entre carreiras distintas, como são as duas polícias, que possuem atribuições diferentes. Entretanto, o governo de Santa Catarina continua, inconstitucionalmente e a despeito do que foi decidido pelo STF, mantendo a mesma política salarial entre as duas instituições da segurança pública.

Nenhum comentário:

Seu comentário não será exibido imediatamente.

Para você enviar um comentário é necessário ter uma conta do Google.
Ex.: escreva seu comentário, escolha "Conta do Google" e clique em "postar comentário".

Caso você deseje saber se seu comentário foi respondido ou se outros leitores fizeram comentários no mesmo artigo, você poderá receber notificação por email. Para tanto, você deverá estar logado em sua conta e clicar em Inscrever-se por email, logo abaixo da caixa de comentários.

Eu me reservo ao direito de não aceitar ou de excluir parte de comentários que sejam ofensivos, discriminatórios ou cujos teores sejam suspeitos de não apresentar veracidade, ainda que o autor se identifique.

Comentários que não tenham qualquer relação com a postagem não serão publicados.

O comentarista não poderá deletar seu comentário publicado sem que haja justificativa relevante. Caso proceda assim, republicarei o teor deletado.


As regras para comentar neste blog poderão ser alteradas a critério do editor, o qual também poderá deletar qualquer comentário publicado, mediante justificativa relevante, sem prévio comunicado aos leitores/comentaristas.

Você assumirá a responsabilidade pelo teor de seu comentário.
Este espaço é livre e democrático, mas exerça sua liberdade com responsabilidade e bom senso!

LinkWithin

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...
Copyright © 2012 Pena Digital.