"Natal sem nascimento"

Por ocasião do Natal que se aproxima, eu pensava republicar um texto simples que foi usado em minha coluna, quando eu escrevia para um jornal local. Entretanto, hoje pela manhã, visualizando algumas mensagens no Facebook, encontrei o artigo abaixo na página da médica imbitubense Clarice Pires Pacheco, o qual evidencia a visão que atualmente se tem do Natal e nos alerta para uma triste realidade.
Natal sem nascimento

A sociedade humana cometeu arriscado desvio de rota ao abandonar a cultura simbolizada no presépio. Não teve sensibilidade para entrever a dimensão social projetada por cenário tão grandioso, a despeito de materialmente simples; quase divino, porque animado pela energia universal contida no nascimento de uma criança. Não soube captar a preciosidade incrustada no sublime valor do parto, nem cultuar a devoção do aconchego afetuoso que deve dignificar o acolhimento de uma nova criatura. Movida pela mente capitalista predatória, tem sido incapaz de entender a criança como figura central da convivialidade respeitosa e estruturante. Confunde vida com negócio, alegria com consumo, felicidade com lucro. Distanciou-se do rastro luminoso da famosa estrela-guia, a bela sinalização cósmica que apontou a grandeza do pequenino; a singularidade da meninice; a originalidade da infância; o vulto radioso do que há de mais sagrado entre as dádivas perpetuadoras da espécie, embora vítima do metabolismo do desprezo.

O visual comovente que emana do presépio não é o da pobreza material, mas o da riqueza emocional a inebriar qualquer recinto do mundo encantado pelo excelso fenômeno do nascer. É o brilho radiante do compartilhamento entre as missões maternas e paternas que prevalecem como pano de fundo no território da ternura. Naquele momento único, a cercania de um recanto povoado por exuberâncias naturais e ocupado por seres vivos os mais diversos sintoniza a composição poética da paz ambiental, paisagem em que floresce a vivacidade do ser humano recém-chegado ao planeta. Dos figurantes mais carentes aos mais poderosos, todos se curvam aos pendores celestiais integrantes do corpo e da alma de pequeno organismo, cujo coração pulsa nobres anseios na manjedoura da humanidade. Até mesmo as majestades de então, os reis magos, deslocaram-se de terras longínquas para demonstrar, com a discrição da humildade, a submissão à limpidez de uma vida nascente. Não apenas porque o bebê se chamava Jesus, mas por se tratar de um recém-nascido que, assim como aquele e todos os outros, representa a natureza humana mais pura — a de alguém ainda bem próximo à fonte infinita da existência.

Estimulado pela enchente amorosa que inundou o presépio, irradiando-se pelos laços de de uma família ciente de sua predestinação humana — por isso sagrada —, o menino desenvolveu as virtudes potenciais trazidas da vida intrauterina. Expandiu a cognição. Foi original e criativo. Já adolescente, surpreendia os sacerdotes do templo com respostas sábias e revolucionárias. Exerceu, enquanto adulto, deslumbrante liderança à frente da sociedade. A fé que empenhou na luta não violenta para transformar o mundo custou-lhe a morte na cruz.

O legado fecundo daquele histórico presépio traduziu-se em valores éticos, morais e religiosos que resistiram até os dias de hoje. Nada disso teria ocorrido se não houvesse sido dado ao filho de José e Maria o direito à infância saudável e bem protegida, mágica na concepção, lúdica no contexto de estímulos afetivos favoráveis, a garantia que cabe estender a todas as crianças, sem qualquer distinção.

As evidências contextuais que demonstram o estímulo caloroso do afeto na formação de um menino chamado Jesus, converteram-se, ao longo dos séculos, em conhecimentos dotados da mais sólida base científica. Porém, mesmo diante de toda a comprovação do caráter prioritário que os cuidados com a infância exigem, a sociedade renega essa faixa etária, reduzindo-a ao mais absoluto descaso, quando não a medonha insignificância. Prova-o a mudança radical no significado da data comemorativa do parto que deu à luz o menino Jesus. Não se festeja mais, na intimidade do lar, o acolhimento do pequenino bebê com a ternura singular do presépio. Investe-se na fantasia de um velho bondoso que traveste profissional contratado para fazer encenação nos shoppings, distribuir sorrisos ensaiados, posar para fotos e compelir ao consumo frenético de presentes, objetivo único a unir governos e empresários em torno de metas econômicas a serem alcançadas. O presépio deixou de existir. O afeto familiar autêntico que sua cultura projetava não depende de bens materiais. É contexto que contraria expectativas comerciais anualmente planejadas. Desaparece. A criança é o mero alvo do consumismo natalino despertado pelo marketing da modernidade. O símbolo do Natal é a árvore repleta de presentes. Não o estábulo do amor para receber o menino no ambiente sagrado do lar. Natal é business. Nada mais.

Dr. Dioclécio Campos Júnior (Médico, pesquisador associado da UnB, secretário de Estado da Criança do DF, foi presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria)
A sociedade vem perdendo a ternura ao se enveredar por um mundo consumista, sem se dar conta que a violência, um dos maiores males atuais, é consequência dessa mudança cultural.

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