Os dentes de ouro da defunta

A Indústria Carboquímica Catarinense-ICC foi o motor do desenvolvimento de Imbituba. Aprovada a construção no final dos anos sessenta, a empresa entrou em operação uma década depois. Ela forneceu à cidade inúmeras benfeitorias que demorariam muito tempo para que fossem realizadas, se não houvesse sua instalação. Por muitos anos, o capital estatal fez bem à economia do município. Contudo, a poluição que causava fez crescer o número daqueles que não queriam saber dessa indústria no coração da cidade.

Haviam outros motivos mesquinhos que atraíam mais pessoas ao grupo de descontentes com a empresa, mas vamos ao que interessa, pois este artigo não é para falar sobre isso, e nem adianta mais falar nisso.

Com o fim de suas atividades fabris, em 1993, para desespero de centenas de empregados e milhares de pessoas, enquanto a felicidade era vista em muitos olhos dos que não estavam entre os que dali sobreviviam, Imbituba sofreu um baque econômico, pois o Porto não navegava em águas calmas e Imbituba não era um mar de oportunidades - e há quem diga que ainda não é. Era uma cidade de um povo sem esperanças, mas mesmo assim, boa parte dele via com alegria o fechamento da empresa.
Para mim, que vivi isso, que trabalhei nela por 11 anos e assisti à angústia de toda essa gente, como também as zombarias de quem estava fora, observo que há bastante similitude com o que está acontecendo no Porto de Imbituba, guardadas as proporções em relação ao número de empregados.

Em agosto de 1997 fui desligado da empresa. Sair por aquele portão e deixar para trás uma parte de minha vida foi muito doloroso. Saber que Imbituba estava perdendo um patrimônio enorme e que havia condições econômicas para que o governo federal mantivesse a empresa funcionando com parte dos empregados, nem que fosse para vender o gesso que ali estava estocado, mas preferiu liquidá-la. Ninguém se preocupou. Ninguém enxergava ou queria enxergar.
Imensurável quantidade de gesso foi vendida por alguns trocados a uma empresa privada, e cuja transação comercial está sendo até hoje discutida na Justiça Federal, após denúncia da Procuradoria da República, diante do irrisório valor e da forma como foi vendida.

No ano 2000, o município de Imbituba, através do então prefeito Osny Souza Filho, assinou contrato de comodato com a empresa responsável pelo patrimônio da ICC, a Petrobrás Gás S/A - Gaspetro. Nesse contrato, o município passou a ter a posse do imóvel e ser, portanto, responsável por ele, mas todas as benfeitorias realizadas, até o valor de um milhão de reais, seriam reembolsadas pela Gaspetro, ao fim do contrato, em 11/02/2015.
A intenção que se divulgava era transferir para os prédios da extinta empresa algumas secretarias municipais. E fizeram isso. Por um bom tempo. Até que se constatou que o espaço era insalubre para nele funcionar órgãos públicos, inclusive com alertas do Corpo de Bombeiros.

As secretarias municipais deram adeus à ICC, mas, para espanto de muita gente - se é que alguém ainda se espanta por aqui -, empresas privadas já haviam se alojado na área considerada patrimônio público federal, desde o primeiro ano do contrato entre Petrobrás e município de Imbituba.
Empresas e fabriquetas - umas já foram, outras permanecem - passaram a explorar o espaço, na "omissão" existente no contrato de comodato, até porque não se esperava que o município, ao arrepio da lei - entendo eu - , fosse autorizar tal situação, que, para mim, configura, em tese, improbidade administrativa.

Em junho de 2000, o município de Imbituba autoriza a empresa Imbifértil a explorar parte da área da ICC, ou seja, "utilizar os bens exclusivamente para a consecução das atividades constantes de seu objeto social", não podendo "ceder os bens a terceiros sob qualquer título, eventual ou permanentemente, sem o expresso consentimento do município".
Nesse contrato, o município assume indenizações - aparentemente vultosas - à Imbifértil, se ocorrer algumas situações de rescisão contratual. É inadimissível que o município tenha se comprometido com tais indenizações, tendo em vista que a própria Gaspetro limitou indenização ao município ao valor de um milhão de reais!

Em meados de 2006, o então prefeito José Roberto Martins encaminhou projeto de lei à Câmara de Vereadores, o qual autorizava a "ampliação e diversificação na movimentação com granéis líquidos e sólidos", sob o argumento de que essa diversificação geraria novos negócios ao "Porto de Imbituba e ao Município", além de oportunizar a "possibilidade de gerar novos empregos".
O projeto foi aprovado.

Em 2009, o Tribunal de Contas do Estado aplicou multa ao ex-prefeito Osny Souza Filho por ter autorizado que empresas, fabriquetas, órgãos públicos e até a UNISUL funcionassem dentro da área da ICC, conforme relação a seguir: Indústria e Comércio de Artefatos de Fibras Ltda., Universidade do Sul de Santa Catarina, AMA Oil e Brasil Ltda., Ello Comércio e Representações Ltda, Centro de Ensino e Treinamento em Enfermagem-SALUS, Polipetro Distribuidora de Combustível Ltda, Imbifértil Fertilizantes Catarinenses Ltda. e IBAMA.

Motivo da aplicação da multa: cessão de imóveis pelo município a todas as pessoas jurídicas acima relacionadas, "sendo que os referidos imóveis não eram de propriedade do Município, haja vista que foram recebidos pelo Ente em comodato firmado com a empresa Petrobrás - Gás S/A".
Qual o valor da multa? Risíveis R$ 800,00!

Em junho de 2009, o Tribunal de Contas encaminhou ofício ao então presidente da Câmara de Vereadores, Christiano Lopes de Oliveira, comunicando-o da decisão desfavorável ao ex-prefeito Osny Souza Filho, conforme segue: "(...) comunicar esse Poder Legislativo Municipal (...) para que adote as medidas cabíveis quanto à rescisão dos contratos de comodato (...), nos termos do art.36, § 2º, "a", da Lei Complementar Estadual nº 202/00".

O que diz a lei citada pelo Tribunal? Diz o seguinte:

"Art. 36 - A decisão do Tribunal de Contas em processos de fiscalização de atos e contratos e de apreciação de atos sujeitos a registro, pode ser preliminar ou definitiva.
(...)
§ 2º Definitiva é a decisão pela qual o Tribunal:
a) manifestando-se quanto à legalidade, eficiência, legitimidade ou economicidade de atos e contratos, decide pela regularidade ou pela irregularidade, sustando, se for o caso, a sua execução ou comunicando o fato ao Poder competente para que adote o ato de sustação".

A pergunta ainda sem resposta é a seguinte: por que a Imbifértil permanece dentro da ICC?
Além dela, funciona a empresa Sanaval. E como essa segunda empresa se instalou na área, mesmo com a decisão do Tribunal de Contas? Existe contrato de comodato entre o município e a Sanaval? Se existe, foi aprovado pela Câmara de Vereadores, como ocorreu no caso da Imbifértil?

Neste mês, recebi de um leitor uma informação sobre um processo que está tramitando em nossa Comarca, o que me motivou a escrever esta postagem.
No mês de abril deste ano, o Ministério Público local ajuizou a Ação Civil Pública de nº 030.13.001586-5, figurando no polo passivo a antiga ICC e a Petrobrás Gás S/A - Gaspetro, através da qual está sendo investigada a poluição dos resíduos existentes na área da fábrica, resíduos estes que estariam poluindo o solo, subsolo e até o mar.
No dia 30 de abril, houve uma liminar determinando a retirada dos tanques abandonados e que as rés façam um estudo acerca do dano ambiental causado. Veja a decisão:

"Pelo exposto, CONCEDO a liminar para determinar que as requeridas Indústria Carboquímica Catarinense S/A - ICC e Petrobrás Gás S/A - Gaspetro: a) procedam a retirada dos tanques abandonados na área do pátio industrial, conforme mencionado na incial, no prazo de 30 (trinta) dias, sob pena de multa diária de R$ 5.000,00 (cinco mil reais); b) realizem, às suas expensas, acatando a inversão do ônus da prova, estudo do solo, subsolo, lençol freático, em toda região que pertencia à ICC/Gaspetro, no município de Imbituba, a fim de se apurar a extensão do dano ambiental, na área, pelo vazamento de resíduos ácidos, no prazo de 30 (trinta) dias, comprovando que protocolou referido estudo na FATMA, sob pena de multa diária de de R$ 5.000,00 (cinco mil reais); c) após o estudo, apresente PRAD junto à FATMA no prazo de 60 (sessenta) dias, sob pena de multa diária de R$ 5.000,00 (cinco mil reais). Cite-se e intimem-se com as advertências legais. Cumpra-se."

Conforme informações obtidas, ainda há nos tanques da ICC resquícios de produtos químicos e que estão vazando para o solo, em razão da deterioração desses tanques, motivo da Ação Civil Pública.
Ocorre, no entanto, que, também segundo informações, as quais são de boa fonte, mas é preciso que a prefeitura municipal, através de seu órgão responsável, e o Ministério Público, diante de suas atribuições institucionais, verifique a veracidade dessas informações, quais sejam: a empresa Sanaval trabalha com soda cáustica e efetua lavação a céu aberto dos caminhões que a transportam, além de essa água utilizada ser lançada no solo, dentro do pátio da ICC, sem qualquer tratamento.

Confirmando-se essa situação envolvendo a Sanaval, a Ação Civil Pública poderá gerar um grande problema ao município, pois, se a Gaspetro for condenada pela poluição, é possível que queira chamar o município ao Judiciário, em razão da poluição causada por empresas lá dentro instaladas, com a permissão da prefeitura, sem que houvesse amparo legal para isso, conforme apontado pelo Tribunal de Contas.

Vamos conjecturar mais um pouco. E se o município, diante dessa Ação Civil Pública e a possível constatação de poluição causada por empresas que lá se instalaram ou estão instaladas, decidir que as remanescentes desocupem a área? A Imbifértil e a Sanaval sairão de lá sem buscarem no Judiciário indenizações do município, por lucros cessantes e benfeitorias realizadas? Evidentemente que não!
Por enquanto, porém, tudo não passam de hipóteses, de ilações de um blogueiro que recebe informações de leitores e resolve escrever sobre elas. Espero mesmo que o município não venha a sofrer penalizações por tudo isso que foi exposto, pois a população não tem culpa da má gestão administrativa.

Fotos enviadas por outro leitor que mostram parte do patrimônio sem uso e sem conservação:

Tanques deteriorados

Prédio abandonado e sem conservação

Pátio e prédios abandonados

Desconheço o conteúdo desses sacos

Milhões de reais em estruturas

Mais do mesmo abandono

Empresa funcionando sob contrato precário com o município para ter a guarda
de veículos apreendidos pelas polícias Militar e Civil

Uma coisa é certa: como uma defunta com dentes de ouro, a ICC está sendo vilipendiada após sua morte.

Para complementar esta leitura, leia Os restos mortais da ICC, em cuja postagem existem informações importantes não mencionadas neste post.

2 comentários:

  1. Caro Sérgio, sou filho de ex-funcionário da ICC, sei muito bem tudo o que aquela enorme empresa fez por minha família e por muitas outras. Não moro mais em Imbituba há mais de 15 anos e lembro como se fosse hoje de minhas lágrimas e de minha família quando meu pai foi desligado dela. Sempre achei a ICC uma empresa imponente, com laboratórios de fazer inveja até hoje á muitas universidades por ai, e lendo seu blog hoje, minhas lágrimas voltaram ao ler e ver as fotos do que ainda restou da ICC. Uma lástima, e uma pena para Imbituba que poderia estar com toda certeza muito melhor do que está, hoje vivendo as custas de um porto capenga e falido que esta servindo de mercearia para os navios que ali atracam. Estou me formando em engenharia de petróleo e gás nu conceituada universidade em Santos e trabalho no maior e mais sucateado porto da américa latina. Aqui existem inúmeras empresas que na mesma época da ICC também já existiam e fazem parte do conglomerado PETROBRAS/GASPETRO e nem por isso fecharam suas portas, todas sem exceção se modernizaram e estão trabalhando e empregando muita gente, só pra detalhar algumas como a GASPETRO situada na margem direita do porto de Santos, que armazena derivados de petróleo, ácido sulfúrico(O mesmo produzido pela ICC), etanol, solventes e outros matérias está á míseros 20km do centro de Santos. Gostei e acompanharei seu blog sempre, parabéns !!!

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    1. Edgar, senti a necessidade de escrever um pouco sobre a ICC, porque sentia e às vezes sinto saudades do tempo que lá trabalhei. Também vi que era necessário mostrar o que está acontecendo, já que a mídia local se emudece diante disso.

      Quanto ao blog, não o atualizo como antes. Diversos motivos - de ordem pessoal e profissional - me levaram a escrever menos. Entretanto, quando posso, publico alguma coisa. Não mais com aquele ímpeto que me guiava, porque vamos amadurecendo e observando que nem tudo vale a pena. De qualquer forma, é bom tê-lo como mais um leitor. Gostaria de saber quem é seu pai. Escreva para blogpenadigital@gmail.com. Será um prazer receber sua mensagem. Att. Sérgio.

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